segunda-feira, 20 de outubro de 2008

CRISE




Sou feita de palavras. Minha vida foi escrita a lápis; meu passado é feito de marcas deletáveis que permanecem ao fundo, em borra e pressão, sobre o papel. Minhas mãos são as tesouras do tempo. Meus pés são rachaduras de algodão. Meus passos, inaudíveis e invisíveis. Minha idade, apocalíptica. Meu futuro só é real quando inventado.

Vivo no espaço em branco entre o começo e o fim. Aliás, o que é a vida, senão o vazio entre fui e serei? Daqui do meio, não vejo nenhum dos lados, apenas imagino. Não é possível voltar nem ir adiante, então permaneço somente. A visão é turva, enevoada, esvoaçante. Olho para trás e vejo lascas de sombra, ritmos estilhaçados, teatro oco e mascarado. À frente há revólveres antecipados e o elástico estremecer dos cadáveres entalhados nas teias de vidro que te sustentam.

Cavei buracos entre passado, presente e futuro, e agora é preciso tapá-los para que eu fique visível. Sou o instante imediato, o centro absoluto, a ficção essencial que organiza o tempo e explica os porquês. Sou feita de histórias, estórias, vitórias, ruínas – mariposa de variadas plumagens a tecer os anais da História. Sou morfologicamente permanente e sintaticamente transitória.

Caminho sobre covas suspensas em liquido cemitério. Vomito ansiedades e mudanças. Revelo a enfática lâmina a costurar nuvens em palco de espelhos. Faço parte da ambigüidade deslizante que abrevia o alvo e descostura o arqueiro.

Sou a consciência que explica seu perímetro e apara suas arestas. Sou o fim prematuro epileticamente triturado.

Bem-vindos, mais uma vez, ao deserto entre. Apertem os cintos. Viajaremos por tempo indeterminado.

Um comentário:

Marco Camunha disse...

Pri, o grau de introspecção desse texto é enorme. Mas, com efeito, o fim de cada frase me angustia a ler a próxima, sem pausa. No mundo de desenhos que se forma, quase tudo se pode ver.